Por Trás dos Números: 5 Verdades Incômodas da Segurança na Bahia Reveladas em Documento Oficial
Análise do PQUALI da Bahia: Desafios da Letalidade e a Visão Estrutural da Força Invicta
A Associação dos Oficiais Militares Estaduais da Bahia (Força Invicta) reconhece a complexidade e a urgência do debate sobre a segurança pública no estado. A publicação do "Plano de Atuação Qualificada de Agentes do Estado" (PQUALI) 2025-2027 pelo Governo do Estado representa um relevante exercício de autodiagnóstico. Este documento oficial expõe um paradoxo desafiador: enquanto a Bahia celebra reduções consistentes nos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs), o estado enfrenta um aumento crítico nas Mortes por Intervenção Legal de Agentes do Estado (MILAEs).
Como Associação que representa os Oficiais Militares Estaduais, comprometidos com a legalidade, a eficiência e a preservação da vida, vemos o PQUALI como uma ferramenta de análise. No entanto, sua implementação não pode se resumir a uma crítica superficial da atividade na ponta da linha. O próprio plano fornece um diagnóstico que, para ser solucionado, exige uma compreensão profunda do contexto de criminalidade enfrentado e um investimento estrutural que qualifique e valorize o agente.
Analisamos este plano e o confrontamos com o cenário nacional, destacando os desafios e, principalmente, as contribuições propostas pela Força Invicta.
Para dimensionar o desafio baiano, é crucial situá-lo no contexto nacional, utilizando os dados dos últimos três Anuários Brasileiros de Segurança Pública (FBSP). Os dados confirmam: a Bahia tem sido, consistentemente, o epicentro desse fenômeno no Brasil. O PQUALI, portanto, surge como resposta a um problema crônico que o próprio Estado reconhece.
Dados de 2022 (Anuário 2023): O Brasil registrou 6.429 Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP). A Bahia, com 1.464 mortes, já respondia por 22,8% do total nacional.
Dados de 2023 (Anuário 2024 e 2025): O PQUALI cita o número de 1.702 mortes na Bahia (o Anuário 2025 registra 1.700). Em um universo nacional de 6.413 (dado de 2025) ou 6.393 (dado de 2024), a Bahia concentrou aproximadamente 26,6% das mortes por intervenção de agentes do Estado no país.
Dados de 2024 (Anuário 2025): A tendência persiste. O Brasil teve 6.243 MDIPs, e a Bahia, embora com redução para 1.556 casos, ainda foi responsável por 24,9% do total nacional.
Contrariando a percepção de que a letalidade resulta de grandes operações planejadas, o PQUALI revela um dado surpreendente: um estudo da Corregedoria Geral (COGER) identificou que, em 2023, mais de 40% dos confrontos armados com resultado morte ocorreram durante rondas policiais de rotina.
Este dado não aponta despreparo, mas sim a extrema imprevisibilidade e a intensidade dos encontros fortuitos com criminosos, inerentes à atividade dos agentes de segurança. O próprio plano analisa que situações de rotina geram "respostas improvisadas e reativas", sem o suporte de inteligência. Isso reforça a urgência da "Estratégia 2" do PQUALI: a "Intensificação das Operações orientadas pela Inteligência", para migrar de uma postura reativa para uma atuação preventiva.
O diagnóstico do PQUALI (disponível para download na íntegra) apresenta dados demográficos sobre as vítimas, indicando alta concentração de pessoas negras (94%), jovens de 18 a 34 anos (75,8%) e com baixa escolaridade (52,6% com ensino fundamental incompleto).
A Força Invicta ressalta, contudo, a necessidade de aprofundar a reflexão sobre estes números, desconstruindo a interpretação superficial de que eles resultam de um "perfilamento" racial ou social por parte do agente do Estado. Este perfil não reflete uma "escolha" do agente, mas sim a trágica realidade social das áreas com maiores índices de criminalidade e vulnerabilidade, onde o Estado é chamado a intervir. A atuação se dá em resposta à mancha criminal e ao contexto de violência imposto, e não em acordo com a cor da pele ou a posição social do indivíduo.
O PQUALI identifica como "Desafio 1" o "uso recorrente da força letal", descrito como uma "cultura do confronto". A Força Invicta pondera que esta "cultura" não é uma preferência do agente, mas uma resposta reativa a um cenário de guerra urbana, reflete o Major Igor Rocha, presidente da entidade.
O próprio plano oferece o contraponto no "Desafio 4: Expansão das Orcrims no Estado". O documento detalha o alto poder de fogo enfrentado, citando levantamento da COGER de 2024 que registrou 1.994 confrontos armados envolvendo forças de segurança, dos quais 64% (1.274) resultaram em óbito. A mudança dessa "cultura", como propõe o PQUALI, exige mais do que novos protocolos: exige o fortalecimento das operações de inteligência e asfixia financeira das facções (Estratégias 2 e 4.2).
Atendendo ao convite da própria Secretaria de Segurança Pública (SSP) para contribuir com a elaboração do plano, a Força Invicta realizou uma consulta aos seus associados e encaminhou formalmente 17 propostas estruturais (Ofício nº 001/01/2025).pdf]. Essas propostas focaram na valorização profissional, saúde e qualificação técnica como pilares para a redução da letalidade.
Ao analisar o PQUALI final, vemos uma absorção parcial dessas contribuições, com lacunas significativas.
Inteligência para Operações (Proposta 15): A proposta da FI de "integração de inteligência para operações planejadas", incluindo rondas ordinárias, foi contemplada na Estratégia 2 (Ação 2.3) do PQUALI, que prevê "mapear áreas de risco para subsidiar o planejamento... incluindo rondas e operações".
Apoio Psicológico (Propostas 6 e 14): A solicitação de "avaliação psicológica anual" e "afastamento remunerado... para avaliação psicológica" pós-evento encontra eco na Estratégia 4 (Ação 4.3), que visa "fortalecer o Programa de Apoio Psicossocial (PAP)" e "garantir o acompanhamento psicossocial de agentes envolvidos em MILAE".
Capacitação (Proposta 1): A "capacitação obrigatória e estruturada" (APH tático, UDF, etc.) foi parcialmente acatada. A Estratégia 1 (Ação 1.2) do PQUALI foca na "capacitação continuada em Uso Diferenciado da Força (UDF) e APH", embora a proposta da FI fosse mais ampla, incluindo tiro, defesa pessoal e carga horária definida.
Menor Potencial Ofensivo (Proposta 2): A proposta de garantir IMPO em todas as viaturas foi parcialmente absorvida pela Estratégia 1 (Ação 1.3), que prevê "adquirir e distribuir kits de IMPO para viaturas".
Apesar dos avanços, o PQUALI falha em endereçar os pilares centrais de valorização e saúde estrutural propostos pela Força Invicta, que receberam aprovação massiva dos associados:
Valorização Salarial (Proposta 5): A principal lacuna. A proposta de "implementação da remuneração por Subsídio", validada por 95% dos associados, é completamente ignorada pelo PQUALI.
Saúde Física e Preventiva (Propostas 3, 4, 7, 8): O plano foca no apoio psicossocial (pós-evento), mas não contempla os exames preventivos anuais (médicos, físicos), nem os "treinamentos físicos regulares" ou "exames toxicológicos semestrais", todos custeados pelo Estado.
Condições de Trabalho (Proposta 10): A "regulamentação da carga horária operacional", essencial para evitar a sobrecarga, também não é mencionada.
Análise Técnica (Proposta 11): A criação de uma "Comissão técnica de análise operacional" para avaliar a doutrina e a técnica (diferente da apuração correcional) não foi incorporada, perdendo-se a oportunidade de criar um mecanismo de aperfeiçoamento contínuo.
A Força Invicta vê o PQUALI 2025-2027 como um marco de transparência. Os diagnósticos são duros, mas alinhados com a realidade fática.
No entanto, a redução da letalidade por intervenção de agentes do Estado, objetivo comum, não será alcançada apenas com as medidas de controle (como CCOs) e inteligência propostas. O plano, ao absorver parcialmente as contribuições técnicas (UDF, APH, Inteligência), ignora pilares essenciais de dignidade e estrutura que a Força Invicta apresentou formalmente, como a valorização salarial por subsídio e a saúde física e preventiva.
Reconhecer os desafios é o primeiro passo. O próximo, e indispensável, é prover às forças de segurança o respaldo jurídico, o treinamento e os meios necessários, mas, acima de tudo, a valorização e as condições de saúde estruturais para enfrentar o crime organizado, preservando a vida de toda a sociedade.